Requalificação do Centro de Niterói

Requalificação do Centro de Niterói
29/03/2014

'A sociedade se fechou nesse bunker que são os prédios'

Secretária de Urbanismo e Mobilidade de Niterói, Verena Andreatta diz que é preciso melhorar as condições urbanas para uso coletivo

Técnica experiente, com doutorado em Barcelona, onde morou por 13 anos, Verena trocou a badalada cidade espanhola por Icaraí, para comandar o ambicioso projeto de Niterói. Quis viver o dia a dia da cidade, das compras ao chope na esquina, e conhecer sua organização. Há poucos dias de volta à Ipanema, agora é pelo mar que vai trabalhar, desembarcando no ponto que pretende mudar radicalmente.

Qual a importância de recuperar frentes marítimas de cidades como Rio e Niterói?

Já realizei estudos sobre experiências de renovação em cidades que tem suas frentes voltadas para o mar . No geral, são áreas obsoletas, que com o desenvolvimento dos portos foram se tornando grandes vazios urbanos, mas com um potencial e uma vocação muito forte. Esses projetos permitem juntar novamente a cidade com o mar, valorizando esse contato do mar com a vida urbana.

A área de revitalização inclui o Caminho Niemeyer. O primeiro prédio aprovado na região, que é privado, também foi desenhado por ele. Isso vai definir um padrão estético para a arquitetura que vai nascer no Centro?

É difícil prever a qualidade dos prédios que virão. Não podemos impedir a criação arquitetônica ou criticar o trabalho de alguém só porque gosto ou não gosto. Mas temos critérios e parâmetros para analisar o impacto morfológico que cada edificação causa, por exemplo. Suas dimensões, a maneira como se insere naquela quadra. Dentro do que já existe na nossa legislação, podemos orientar. Mas acredito que Niterói vai receber bons projetos.

O que a fez sair de Barcelona e aceitar o cargo em Niterói?

Em Barcelona, pude viver numa cidade que se ancora no espaço público da mobilidade, onde tudo funciona, os pedestres caminham bem, com conforto, em calçadas amplas, padronizadas; o mobiliário é de qualidade, com bom desenho. Acredito na transformação do espaço público, na melhoria das condições urbanas para o uso coletivo, de todos. E em minha experiência acadêmica observei boas ideias aplicadas em diferentes regiões do mundo e como elas podem ser adaptadas para a nossa sociedade.

Que lições apreendeu da vivência em Barcelona?

Como funciona a cidade. Lá, há a reutilização das águas da chuva, os parques estão preparados para uma cidade sustentável. O transporte coletivo é de qualidade. A mobilidade é ancorada num sistema cicloviário, de bondes, VLTs; as ruas têm trânsito pacificado. Em algumas, o limite é de 30 quilômetros por hora. O carro não é um inimigo, mas o pedestre tem pioridade. E o próprio modelo de sociedade é interessante. As crianças só conseguem vaga em escolas que ficam num raio de oito minutos a pé de suas casas, por exemplo.

E está morando no Rio ou em Niterói?

Voltei há poucos dias para o Rio porque já tinha um apartamento em Ipanema e em Icaraí pagava aluguel. Mas quando aceitei o convite, resolvi vir morar em Niterói por um tempo, um período de adaptação à cidade até para vivenciar a vida urbana. Sempre achei importante pisar o terreno, conhecer a estrutura da cidade, saber como funciona, andar de ônibus, a pé, de táxi, fazer compras, tomar um chope na esquina, visitar parques e praias. Usar a cidade.

Você veio de barca hoje... como está vendo esse transporte público? Há muitas reclamações sobre a qualidade.

Eu realmente uso o transporte público. E quando venho do Rio, venho de barca. Com as barcas, pode ter sido sorte, mas nunca tive problemas. Precisa de melhorias, claro. Os ônibus precisam ter melhor infraestrutura: ar-condicionado para aguentar esse verão mais forte, rebaixamento do piso. Precisam se aperfeiçoar, mas a frota que circula em Niterói já está sendo renovada.

O que mais gosta e o que menos gosta na arquitetura de Niterói?

Essa plataforma de cidade com obras do Niemeyer é bastante destacável. O MAC é um ícone e fez com que Niterói tenha um antes e depois em relação ao turismo. Criou um valor não só arquitetônico, urbanístico, mas também econômico para a cidade. A minha crítica é a essa arquitetura que dissocia os prédios da vida urbana, com construções com embasamentos voltados para garagem, playground. Os prédios se voltaram para eles mesmos. E não só em Niterói, mas em todas as grandes cidades. Esse é um processo que tem a ver com a entronização do automóvel — a vaga de garagem passou a ter um valor muito grande, até pela falta de transporte público de qualidade —, e com a violência também. Hoje, os prédios têm espaço gourmet, espaço disso, daquilo. A sociedade foi se fechando nesse bunker que são os prédios. E a rua como o espaço de brincar, de formação da cidadania, foi se perdendo.

O Porto Vida, único residencial já anunciado no Porto, pretende retomar o contato da arquitetura com a rua, com prédios com lojas térreas, praças públicas. Isso está previsto em Niterói?

É uma preocupação sim. Ao criar a legislação para a área, nos preocupamos em não deixar que o embasamento fosse tão alto, por exemplo, em limitar o número de vagas de garagem, porque este é um projeto de mobilidade urbana. E tivemos a preocupação não só com a forma, mas também com o uso desses prédios... Estabelecemos que 60% serão residenciais e 40%, comerciais. Esse é o equilíbrio que precisamos para que o Centro volte a ser um bairro com bastante vida. Hoje, há um pouco mais de 26 mil pessoas morando no Centro. Atrás do Caminho Niemeyer, por exemplo, é um vazio urbano enorme, numa área de grande potencial.

No Rio, esse equilíbrio entre residenciais e comerciais está ameaçado, já que não houve lançamentos residenciais. O que garante que em Niterói vai ser diferente?

Esses são projetos de longo prazo, que levam até 20 anos para se consolidar. No caso do Porto, a avaliação nesse momento é bastante crítica. Ou porque o projeto ainda não se completou ou porque faltam políticas subsidiárias que animem o lançamento de residenciais. No nosso caso é diferente porque o Centro é ainda residencial. Ele perdeu força nos últimos anos, mas ainda faz parte da memória recente da cidade como um lugar bom para residir. Essa memória, com o estímulo que o projeto vai dar para o uso residencial e a qualidade que esse lugar vai ter, vai alavancar esses lançamentos. Estamos fazendo um projeto atraente para que o bairro fique charmoso, com qualidade, segurança, iluminação, vegetação, com vida.

Projetos de revitalização costumam trazer junto com eles o fenômeno da gentrificação. Como impedir que a melhoria da região e a chegada de comércios e prédios mais sofisticados expulse a população de renda mais baixa que já vive naquela região?

Por mais que o bairro vá se valorizar, acredito que as pessoas que resistiram até agora, vão se apropriar também dessas melhorias. Ninguem está falando em aumento de impostos ou num aumento do custo de vida urbana. Estamos tentando melhorar a qualidade de vida ali e acho que as pessoas vão se sentir melhor, mais seguras e vão querer continuar. A gentrificação é uma questão sempre polêmica, mas a não ação já fez com que esse Centro se esvaziasse.

E por que não fazer as casas do programa Minha Casa Melhor em áreas mais próximas a esse Centro?

O preço dos terrenos conta muito para viabilizar as obras de programas como o Minha Casa Minha Vida ou Minha Casa Melhor. E os terrenos mais próximos às areas centrais sao mais caros. Mas nós estabelecemos, por lei, a possibilidade de construir um empreendimento do Minha Casa Minha Vida num setor de São Lourenço. Só depende de algum empresário querer construir ali, dentro do programa.

A área que será revitalizada inclui favelas. Elas serão incluídas no projeto?

A política é de urbanização também dessas áreas. Será algo no estilo daquela urbanização feita nas favelas do Rio na década de 1990, abrindo ruas, levando equipamentos, médicos de família, postos de saúde. Ninguém será removido.

Vocês fazem questão de frisar que esse é um projeto de mobilidade. Mas será possível construir prédios de até 40 andares. Esse adensamento não pode prejudicar ainda mais o caótico trânsito de Niterói?

Não. A ideia de que o adensamento cria trânsito é um mito. Em 1975, Niterói tinha 13.400 habitantes por quilômetro quadrado. Hoje, são 8.800. A cidade foi se espraiando, as pessoas foram morar em bairros distantes e passaram a usar cada vez mais o automóvel. Quando as pessoas se concentram num mesmo local e há um bom sistema de transporte, como pretendemos, o trânsito diminui. Além disso, só um setor terá esse coeficiente máximo de aproveitamento do terreno. Será ali perto das barcas, onde será permitido construir até dois prédios de 40 andares, no máximo, por terreno. Nesse caso, o uso será misto: residencial e comercial. A área residencial será mais concentrada no entorno do Jardim São João. Como aquela é uma parte histórica da cidade, justamente onde nasceu a primeira trama urbanística de Niterói — encomendada em 1819 por Dom João ao francês Palière —, fizemos questão de preservá-la. Então, ali, o gabarito máximo será de oito pavimentos. Até para não criar distorções com prédios muito altos e outros muito baixos.

E como será o trânsito nesse novo Centro, em especial nesse primeiro momento quando ainda não há VLT, metrô, estação intermodal?

Vai ser um trânsito pacificado, mais calmo, com ciclovias, e algumas ruas privilegiando mais ônibus e carros. Mas sempre dando prioridade ao pedestre, com ampliação das calçadas, por exemplo. Em algumas ruas, inclusive, vamos ser bastante restritivos porque hoje os pedestres andam nas ruas. Mas no futuro, teremos muitos meios de transporte numa região pequena. O Centro de Niterói é caminhável, desde que as ruas tenham arborização, áreas de sombra. E nós vamos plantar três mil árvores nessa região.

Serão 16 quilômetros de ciclovia. Não é pouco?

Essa será a rede cicloviária do Centro apenas. A prefeitura tem planos para fazer a ciclovia Translagunar, de Itaipu até Charitas, outra que corte toda a orla da baía e que se conecte com uma ciclovia universitária, que deverá ligar todos os pontos universitários de Niterói.

O projeto prevê uma implantação ao longo de 15 anos. O que será feito primeiro e quando começam as obras?

A previsão é que as obras comecem já no segundo semestre desse ano. Primeiro pela infraestrutura, que deve durar três ou quatro anos. Vamos fazer um mergulhão, a esplanada em frente à Amaral Peixoto, uma marina pública para 150 barcos, e a criação de um parque litorâneo, com um polo gastronômico na área próxima ao Mercado São Pedro. Vamos fazer um complexo pesqueiro ali, com vários restaurantes, atracadouro novo, local para os marisqueiros trabalharem e casas para a comunidade que já mora na área.

Essas mudanças no Mercado São Pedro causaram muitas críticas de alguns setores...

Este é um setor produtivo importante de Niterói. E acreditamos na valorização não só do setor, como das pessoas que vivem ali. Hoje, aquele conjunto não é condizente com a imagem da frente marítima que queremos resgatar. O projeto prevê a criação de habitações dignas com um novo desenho, uma boa qualidade arquitetônica para que a vida daquelas pessoas que vivem ali fique melhor também. As pessoas criticam, mas ofertar esse espaço público de qualidade é também uma questão de honra para toda a cidade. Não podemos ter uma área como essa abandonada numa cidade com o porte de Niterói. Não estamos decorando. Estamos atacando estruturalmente os problemas.

Para fazer as obras de infraestrutura, vocês precisariam antecipar recursos com a venda dos Cepacs. Mas o Estado não doou os terrenos que seriam dados como garantia financeira para a operação. Isso não pode atrasar o projeto?

Não. A Câmara vai votar o número de Cepacs. Quanto aos terrenos do Estado não são condição sine qua non. No Rio, era importante ter garantias porque 60% dos terrenos eram públicos. O incorporador não consegue acesso a esse terreno. É uma dificudade. No caso de Niterói, os terrenos são privados. Então, acreditamos que os Cepacs, que já estão definidos por lei e nada mais são que esse potencial construtivo, servirão como uma âncora do projeto.

Fonte: Jornal O Globo

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